sexta-feira, 30 de junho de 2017

Dia de S. Pedro na Afurada entre amigos a escutar Pedro, o marinheiro!


O espraiado imenso... A areia de oiro sem fim, desmaiada pouco e pouco e envolta
no fundo em pó das ondas – o mar infinito, verde-escuro, verde-claro, rolos sobre rolos,
 
por fim, num côncavo junto ao cabo, desfazendo-se em espuma e brancura. Ao norte
névoa leitosa e viva, que sobe ao ar como um grande clarão branco. Água sem limites –
céu sem limites – areia sem limites – e a voz imensa, o lamento eterno, dia e noite, mais
baixo, mais alto, mas que nunca cessa de pregar...
              Raul Brandão, Os Pescadores

Raúl Brandão captou bem a alma e a identidade do povo pescador. Do nosso povo. E a Afurada é uma comunidade piscatória. Desde os primórdios... Em dia de S. Pedro impunha-se romaria até esta Freguesia. Como era quinta-feira e dia de voluntariado no Cantinho das Aromáticas, fomos com o grupo da maltaromática almoçar à Afurada na companhia do marinheiro Manuel Pedro.


Mas, sobre este marinheiro já conversamos (que a conversa é longa e divertida)...falemos previamente da Afurada!














A localização da Afurada, virada à foz do rio com escarpas na outra extremidade, levou a que a Afurada visse no Douro o seu principal veículo de comunicação com o mundo exterior. A região conta com um longo historial no que à sua formação diz respeito, nem sempre sendo claras as referências que lhe são feitas. De nome primitivo Furada. Só no século XIII, concretamente no ano de 1255, com o foral de Gaia doado pelo rei D. Afonso III (r.1248 - 1279), e no ano de 1288 com o foral de D. Dinis (r.1279-1325) e D. Isabel (1270-1336), surgem as primeiras referências concretas em relação à atividade deste local, sendo bastante explícito no que diz respeito à exploração dos recursos marinhos. Mais tarde, no foral de 1518 D. Manuel I (r.1495-1521) estabelecem-se rendas e direitos sociais.
Desde sempre, contudo, não restam dúvidas que era um areal próprio para a pesca à varga. Mas só nasceu como povoação em finais do século XIX, sendo os seus primeiros habitantes oriundos das praias de Espinho, Ovar, Furadouro e Murtosa, que aqui chegados se dedicam a várias fainas de pesca, sendo a mesma a quase e única actividade económica do lugar de Afurada, da freguesia de Santa Marinha.
Afurada, começa então a ser bastante conhecida pela sua intensa actividade piscatória com fama predominante para a pesca da sardinha, com a construção das primeiras traineiras, e pesca do sável e lampreia, passando a ser o principal centro piscatório do concelho de Vila Nova de Gaia.

A peculiaridade dos homens e mulheres da faina está bem presente nesta comunidade (felizmente) e percebe-se isso facilmente com uma visita ao Centro  Interpretativo do Património da Afurada  http://www.parquebiologico.pt/doc.php?id=195 (sobre o CIPA - centro Interpretativo da Afurada, realço o espólio, a simpatia e bom acolhimento dos seus funcionários e a organização do espaço. Porém, fica uma nota: seria importante possuir um site próprio e devidamente atualizado).
Bem, agora que estamos devidamente situados voltemos ao dia de S. Pedro. As festas em honra de S. Pedro na Afurada remontam ao início do séc. XX.
Em 1908, quando a capela é dada por concluída, realiza-se a primeira festa. Nesse primeiro ano as festividades tiveram como ponto alto a eucaristia em honra de S. Pedro, celebrada pelo pároco de então. A procissão saiu pela primeira vez da igreja paroquial de Stª. Marinha, na altura sede de freguesia. Os andores foram transportados em barcos, rio abaixo, até ao cais de desembarque. Nos anos seguintes, a realização das festas continuou com periodicidade anual, a cargo da comissão administrativa da capela.
Desde 2012, consta do património material das festividades, um andor com rede idealizado pela artista plástica Joana Vasconcelos para enaltecer do patrono da freguesia. Executada por pescadores da Afurada, de acordo com as técnicas que tecem as redes de pesca, a malha dourada abre-se simbolicamente, cobrindo os pescadores que transportam o andor durante a procissão. Decorada com a iconografia de São Pedro, a rede está conotada com a proteção celestial dourada que envolve os carregadores do andor, escudando-os da má fortuna e das intempéries que atormentam a vida de quem vive do mar. Talvez por isso, haja tanta competição para carregar o andor na procissão. Mas essas "lutas", têm os naturais da Afurada de fazer com a Dona Ana do Mar, pois é ela quem tem a responsabilidade de organizar a procissão....
 
Manda a tradição que no dia de S. Pedro se comam as sardinhas com broa de Avintes, mas o nosso grupo de convivas optou por outro repasto num dos mais famosos restaurantes da Afurada. E digo, com pena minha, não foi num restaurante típico como desejaria, mas infelizmente o grupo era demasiado grande para se juntar numa "tasquinha". Ganha-se em número de convivas perde-se na qualidade e genuinidade da gastronomia!!! Não se pode ter tudo...





















Findo o almoço lá fomos até ao CIPA para ouvir o Manuel
Pedro. Tal como muitos fez-se à vida longe da sua terra. Não emigrou como alguns amigos e vizinhos para a Alemanha, mas durante mais de 26 anos trabalhou para e com Alemães nos cruzeiros.
Uma vida cheia. Muitas histórias para contar.
A imensidão de mar navegado... seis meses no mar, seis meses em terra.
Tal como Brandão, também Manuel Pedro deve ter vivido intensamente cada ida ao mar...
Se fecho os olhos sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite húmida e cerrada. Não vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e ouço-lhe ao longe o clamor. No primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, lá ao fundo distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde irrompe de quando em quando um grito.( Raúl Brandão, os Pescadores).


Na tarde  de S. Pedro fez magia e falou-nos de nós. Nós, voltas, falcaças, mãos, costuras, botões, pontos, pinhas, gachetas e cochins, são trabalhos da arte de marinheiro. O nó mais antigo que se conhece foi descoberto em 1923 numa turfeira na Finlândia e cientificamente datado de 7.200 AC.
Ali estivemos a escutar e a ver o Pedro executar com a mestria de uma vida um sem número de nós.
Enquanto isso, invejava-lhe o feito de conhecer todos os países que o mar lhe permitiu...
Ora, os países que não são banhados  pelo mar são pouco mais de trinta, países costeiros são mais de 150. Contas feitas, este marinheiro conhece quase todo o planeta, já deu várias voltas ao mundo e agora, ali em plena Afurada trouxe-nos o mar. Até parecia simples o que fazia e dizia. Ficaria a ouvi-lo umas quantas horas mais...como um búzio a falar do mar, a trata-lo por tu.
Que vida tão cheia, a fazer jus às gentes da Afurada que são hospitaleiros, acolhedores e simples...
Parece que foram escritas para  o Manuel Pedro as palavras de Raúl Brandão:
Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar.

Criou-se com ele e guardou-a para sempre.














Que diferente e rica esta tarde de S. Pedro na Afurada com tantos amigos e o Pedro que não é Santo a encher-nos a alma, a fazer-nos rir, a distribuir magia...com tanta beleza e simplicidade! Gosto cada vez mais da Afurada e deste povo da faina e do mar...




1 comentário:

  1. Mais um excelente texto bem documentado por fotos sobre uma tarde passada na piscatória Afurada em que privámos com um filho da terra que connosco partilhou algumas histórias da sua vida profissional vividas no mar. Obrigado pelo registo Maria João.

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